Muito se aprende na BR rumo ao Sul



Parte 1 


Estava na estrada já tinha um pouco mais de 16 horas, pra Porto Alegre ainda faltavam 260 kms. Agora eu lembro com calma, mas na hora me bateu um desespero. Chovia forte desde a divisa de São Paulo com o Paraná, muita água batendo por baixo do motor, o para-brisa sendo castigado por rajadas disparadas por carretas que vinham no sentido oposto e passavam com tudo sobre as poças que se acumulavam pela pista. Era um dilúvio e eu parecia estar remando uma canoa.


Dentro do velho Clio, comigo estavam duas moças que nem de longe se pareciam com a querida Samira, não tinham nada da simpatia da Paula, não eram engraçadas como o José Elmano, elas definitivamente não me faziam sentir a emoção que sempre senti levando as  pessoas por esses caminhos, mas eu tinha que seguir.


Eu estava cansado, as luzes nessa hora já estavam confusas e uma nuvem pesada insistia em nos acompanhar.  A conversa no carro só existia entre as várias pessoas que habitam dentro de mim. Lá fora  por todos os lados passavam carretas, carros, motos, os viadutos brotavam sem parar e mais uma vez passavamos por cima de sei lá o que, lá embaixo pode ser uma avenida, ou apenas um retorno pra quem deseja voltar. Nós três seguíamos em silêncio enquanto a multidão sentada ao redor do meu coração gritava dentro de mim. O guardirreio central parecía querer me abraçar.


Já tinhamos passado por cima daquela grande ponte iluminada que fica ali em Laguna, lá em cima enquanto a cruzávamos eu desejava chegar ao fim daquela grande obra que é referência de Santa Catarina. Eu lembrava da ponte estaiada da marginal Pinheiros e do meu medo que tenho das pontes caírem comigo ainda no meio do caminho.


A viagem seguia tranquila apesar do dilúvio, do sono, do silêncio, do cansaço, das más companhias, da vontade de parar, da vontade de voltar e da vontade de chorar. Analisei tudo e vi que podia parar. Parei num posto, tomei um café , comi um negócio que agora não sei se tava bom, fui ao banheiro e lavei o rosto. Queria poder entrar no carro e dormir, mas ainda faltavam 260 kms. 


Voltamos pra estrada, andamos mais um tempo e nessa hora não ouvi mais a correria do alternador cantar, já tinha me acostumado com aquele barulho chato que até senti falta quando ele se fez ausente. Olhei o painel e vi que tinha rodado mil kilómetros, desci um pouquinho mais o olhar e notei a luz de bateria acesa. 


Onze horas da noite, a correria estourou e tudo no carro naquela hora gastava energia, as últimas gotas que tinha em mim e na bateria em instantes acabaria. Consegui parar o carro num lugar seguro no mesmo momento em que ele morreu e no meio da tempestade em algum lugar do sul do Brasil, exaustos esperamos o guincho chegar para nos levar até o posto mais  próximo. Nessa hora eu sorri e chorei, mas ninguém percebeu as lágrimas escorrerem em meu rosto, eu estava na chuva tentando resolver mais um problema e as moças estavam protegidas dentro do velho Clio.


Parte 2


O guincho chegou e nos rebocou até próximo posto e ali Eu sentei e assisti o desfile dos caminhões enquanto pensava. A chuva caia forte enquanto eu me perguntava: "o que que eu vou fazer?"  Já era madrugada e enquanto todos dormiam em suas camas confortáveis, dentro de lares acolhedores por todo o continente, eu estava viviendo os contras do meu sonho, meio desesperado, mas sabendo que os prós sempre  recompensam, sigo firme nas minhas escolhas. 


Eu não tinha chegado em Porto Alegre. Agora faltava pouco, eu estava cansado, sabia que podia chegar, mas não deu. 


Olhei pras meninas e vi que elas não queriam investir mais nem um centavo nessa viagem e se o carro era meu, eu era o culpado por ele quebrar e também o responsável por arcar com as despesas de algum transporte dali até o fim do caminho.


Me senti um bosta, mas no fundo eu sabia que eu não era. Olhei o pátio do posto com carretas estacionadas e seus motoristas dormindo em suas cabines, olhei para as pessoas trabalhando nas bombas de combustível, vi entrar no restaurante um cara conversando com uma moça e não pude deixa-lo passar sem ao menos falar algo:


"Opa boa noite mano, tudo bem? Você não é Uber não né? Tô aqui um tempão tentando achar um que leve as meninas até Criciúma, mas nem sinal de alguém trabalhando agora"


" Ah essa hora você não vai achar, eu não sou Uber e nem posso ir até Criciúma, meu parabrisa tá quebrado. Se for até Araranguá eu posso levar vocês lá."


Entrei no aplicativo, comprei duas passagens saindo de Araranguá e lá fomos nós pela madrugada chuvosa dentro de um carro com o parabrisa trincado, a porta do portamalas emperrada e o som do funk estourando as caixas do Golzinho. Éramos 4 dentro de um carro e e por cima de nós, duas malas gigantes de rodinha. Nunca esquecerei essa cena, foi engraçado, mas também deu medo. Passamos pela praça de pedágio.


Entramos no perímetro urbano, passamos por ruas desertas e molhadas e na escuridão da noite deixamos as minhas  duas antigas caronas na rodoviária da cidadezinha vizinha. No caminho de volta pra Maracajá, vi que aquele carinha dirigindo na madrugada do Sul do país, agora fazia parte da minha vida. No retorno ele mudou o percurso só pra me mostrar as oficinas que eu podia procurar no dia seguinte para arrumar o Clio e quando chegamos ao posto, tomamos algumas cervejas, conversamos bastante e quando o vi indo embora, notei suas asas. Ao mesmo tempo que eu esquecia as duas pessoas  que me acompanharam o dia todo até alí, eu guardava no coração meu novo anjo. Um cara chamado Jef.


Me despedi do Baixinho, o senhor que atendia no balcão do restaurante, fui até o Clio, abaixei os bancos, peguei os cobertores e mesmo com toda a chuva que caia, eu vi algumas estrelas brilhando no céu e na terra. Adormeci sabendo que tinha um probleminha pra resolver na manhã seguinte, mas estava muito feliz por estar parado ali naquele local. Agora eu estava tranquilo e também me sentia em casa. Eu estava as margens da BR 101, só que agora seguindo rumo a extremo sul do Brasil, longe de São Paulo, longe de Ubatuba.


Parte 3


A noite passou e com ela a chuva também se foi. Acordei com o barulho das carretas, o céu já estava azul em Maracajá. Percebi que o primeiro dia de viagem tinha ficado pra trás e eu já tinha vivido um mundo de coisas. 


Levantei, caminhei até o banheiro limpo do restaurante da noite anterior, agora lá dentro pessoas tomam café da manhã, os atendentes já são outros e eu sou apenas mais um que para no balcão e pede um pão com ovo e um café. Comi e sai dali. 


Manhã de sol, caminhada despreocupada pelo pátio do posto, cheiro de gasolina. Avistei o túnel, andei até ele e cruzeiro por baixo da BR. Passei em uma, duas, três oficinas e nada feito, não conseguiam me ajudar. Bateu o desespero, mas logo ele sumiu. Achei no posto ao lado do meu o que parecia a solução do meu problema. 


" Oi bom dia, ontem meu velho Clio no meio da tempestade teve um probleminha, a correria do alternador estourou e agora preciso colocar uma nova pra poder seguir. Vocês fazem esse serviço?"


Dez minutos depois o carro estava ligado e pronto pra partir. Dei adeus a minha primeira morada da viagem e fui. Agora era eu e a estrada. Eu sorri de felicidade, aquela hora a bonança se mostrou depois da tormenta. Eu gosto de levar pessoas pelos caminhos, mas quando estou sozinho, me dou ao luxo de demorar, de parar em todo lugar que me dá vontade e ficar olhando tudo e todos. Eu gosto de parar e ficar sentado descalço, as margens do caminho.


Fui vagarosamente deixando as últimas cidades de Santa Catarina pra trás. Entrei no Rio Grande do Sul, me deu vontade de tomar um chimarrão, mas não tomei. Pausa pra mais um café. Olhei a sinalização e vi a placa indicando Gramado, quero ir lá na hora que tiver um pouco mais de dinheiro. 


A rodovia estava linda, o tempo aberto e eu quase chegando em Porto Alegre. Finalmente encontraria gente conhecida e descansaria numa casa. 


Outra vez Torres, Imbé, Osório e de repente eu estava na BR 290 a Rodovia Osvaldo Aranha ou simplesmente Freeway. Dali até POA era um pulo. 


Cheguei na hora do rush, as ruas tomadas pelos carros . Trabalhadores cansados retornando para seus lares gaúchos. O sofrimento com o trânsito não é um privilégio paulista. Encontrei uma vaga e estacionei perto do prédio do Marcos. Sentei num degrau de uma escadaria bonitinha, tinham frases poéticas escritas nos azulejos que revestiam a escada. Chamei meu anfitrião no celular e ele disse que já estava chegando.


Enquanto esperava conversei com um catador de recicláveis que revirava o contêiner de lixo, mais ouvi do que falei e quando anoiteceu eu já estava na sala de um antigo apartamento na região central da cidade. Conversamos, falamos poesias e ao som de um lindo violão deixamos fluir a energia entre nós.


O Marcos deu uma saída, eu tomei um banho e também saí. Sentei num bar ao lado da escadaria, comi e bebi. Nessa hora lembrei de como a sincronicidade age e de como ela me colocou pela primeira vez perto desse cara incrível que me recebeu em Porto Alegre. Vou contar pra vocês...


Continua em breve.


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Gui Batista

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